9.26.2007

Da arte de grudar e desgrudar os olhos

Eu conheci um moleque que grudava os olhos nas coisas. As vezes no meio de um bocado de gente sumia zezinho sem ser notado. De repente lá estava ele com os olhos presos em alguma coisa que ninguém conseguia se aperceber. Diziam que era um olhar perdido , vago. Mas seus olhos não mexiam , sua órbita era fixa, mirava e acertava o que quer que fosse feito uma flecha, sem nenhum desvio. Um olhar enamorado. Enquanto seus amigos de olhinhos agitados beliscavam todas as coisas com a lente objetiva de seus rostos serelepes , zezinho parecia se abraçar, se ancorar a algo com toda a força de seu corpinho. Era como se tivesse se apercessebido de súbito e tivesse medo de seguir a diante sem levar consigo a tal descoberta , se perder do tal farol no quadro seguinte. Ele sentia como se despedindo das coisa a todo instante. o Instante nunca era tempo suficiente. Era com chegar a uma ilha bonita em dia de sol com mar cristalino e não poder ficar nela o suficiente para molhar os pés.

Mas ele nunca soube ao certo expressar o que sentia. O menino de olhos grudados cresceu e a velocidade das coisas deu voltas na sua cabeça. Rodou tanto que muitas vezes seus olhos abertos não davam conta do que via. Ele se apertava todo pra beliscar as coisas com suas lentes grandes e ansiosas como os moleques da sua turminha. Até se dava bem com isso , quer dizer quase ninguém se apercebia. Todos diziam como ele havia crescido, o congratulavam e diziam que zezinho não se parecia mais como o moleque estranho que ficava a ver navios e faróis enquanto a algazarra da turma só respingava gotas nos seus braços pequenos e atarefados.

Algumas vezes porém alguma coisa inesperada acontece e uma espécie de arrepio percore as costas de homem grande de zé até eriçar todos seus cabelos pretos. Uma ancora é arremessada a algum lugar profundo e ele parece perder o controle sobre si. É sempre como se fosse um sobrepasso, como se tivesse sido capturado. Como se não pudesse ir adiante antes de parar. No meio de situações importantes ele já havia sentido isso acontecer e depois de alguns instantes conseguia alguma maneira de descolar os olhos , de desatar o seu corpo e voltar a si. Então, seus olhos se agitavam novamente como um nadador de mar aberto dando pancadas violentas na água que por instantes havia amansado. Só que seu esforço era inútil e a sensação sempre vinha mais forte.Nestas ocasiôes corria para casa certas vezes tão depressa que ao chegar lá nao era raro esquecer o que o tinha levado a tal comportamento.

Um dia foi forçado a parar pra valer. Ficou encrencado mesmo. Os colegas do trabalho o visitavam e pareciam mesmo preocupado. Os médicos davam diagnostico favorável , mas zé sabia que algo estava errado. Na cama por duas semanas, devido a impossibilidade, teve tempo de pensar nas coisas. Muitas vezes se perdeu em meio a eles. Algumas imagens de crianças voltavam a mente. Lembrava da algazarra dos colegas, lembrava de quando contava as linhas que cortavam o seu dedo maior na palma da mão , lembrava de se perder muitas vezes no meio de um lugar desconhecido e sempre encontrar uma luz de farol como uma ilha cheia de aventuras no meio de uma sala de quatro paredes brancas. Lembrava que uma vez já tinha sido seu melhor amigo. E que era enamorado das coisas. Que seus olhos grudavam e não havia meio de descolar, nem com os gritos incessantes da sua mãe a arrancá-lo por sobre as nuvens da tal ilha onde queria molhar os pés puros de moleque de edifício.

Zé prometeu a si mesmo que não ia passar pelas coisas , nem que para isso fosse ficar um pouco estranho novamente . Ia se adaptar. As pessoas demoraram a compreender. Achavam que zé não tinha se recuperado totalmente da enfermidade. Alguns amigos ficavam mesmo espantados quando percebiam que os olhos de zé se fixavam a alguma região que não alcançavam. Comentavam que devia estar doente. Alguns não compreendiam , e se afastavam dele por precisavam de novos amigos que beliscassem as coisas . Um tanto sorridente e momentos depois zé sorria consigo como dizendo .....eles provavelmente não sabem quantas linhas existem nos seus dedões. Uma coisa engraçada e inusitada se passou. Por diversas vezes era observado na rua como se alguém fixasse os olhos nele. Achava aquilo estranho e engraçado. Como se tivesse sido descoberto em alguma traquinagem . algumas senhoras diziam – Olha ..não é o zezinho filho da dona ruth....em que a outra completava .....é, deve ser ele. Engraçado , nao mudou nada diziam em coro-. O menino de barba no rosto sentia a perna bamba e se pegava com um sorriso bobo e desajeitado que demorava a sair, que ele fazia questão de arrastar sem medo de invadir os frames seguintes , de derramar e vazar para os outros momentos. Ele queria viver o seu momento , no seu tempo. Desse dia em diante zé prometeu que sempre que pudesse e quando acontecesse ia tirar a gravata arregaçar desabotoar a fileira de botões da camisa branca , recolher a barra da calça comprida e mergulhar seus corpo crescido nos águas daquela ilha cheia de aventuras. Que não ia mais desviar ou beliscar as coisas. Que ia sempre vazar, atravessar os frames , invadir os momentos seguintes. Que os seus olhinhos iriam grudar de novo nas coisas. Por isso estou aqui mais uma vez ......contando essa historia. Prometi que não vou mais deixar de grudar os olhos em você. Agora deixa eu brincar de pular na água.......

2.06.2007

A Bandeira do Japão

Havia algum tempo kika estava decidida. Já se considerava preparada para todas as mudanças, e o simples fato de não ter acontecido era apenas uma bobagem, um esquecimento que ela guardava de todos . Como quando seu pai fazia as compras de natal antecipadas e os embrulhos só poderiam ser abertos no dia 25 de dezembro. Estava lá, era dela e ninguém poderia tirar. Sabia que alguma hora ia ser 25 para ela também. Para muitas amigas já havia sido, pensava.

Ainda tinha saudade de como era antes de se decidir. Das gargalhadas que faziam os seus dois olhos amendoados se apertarem e parecerem pequenos para uma boca tão grande. Deixava a cama revirada, as roupas pelo avesso e tudo o que não tinha importância espalhado por prateleiras e gavetas que vomitavam toda espécie de objetos. Algumas noites dormia em meio a uma confusão tão grande que ao acordar a mãe de kika ia verificar se não tinha mais ninguém no seu quarto. Gostava de deixar as amigas escreverem versinhos de gosto duvidoso ou colocar algum garrancho parecido com algo na porta de seu quarto.

Nas páginas finais que escreveu no bloco de anotações que fazia de diário, kika narrava a última conversa que teve com seus amigos e se dizia bastante ansiosa. Pedia desculpas a todos, dizia que nunca ia esquecer de cada um deles, lembrava das risadas ,das confusões, das brigas com a mãe, dos apuros e dizia que precisava fazer isso. Dizia que esperava que entendessem. No fim desta frase havia um borrão incompreensível e algumas letras que embranqueciam na fragilidade do papel molhado. Demorou ainda algum tempo para dormir neste dia , mas estranhamente nenhum barulho vindo do seu quarto atiçou o sono dos seus pais.

No dia seguinte acordou cedo, preparou um sanduíche de forma desajeitada deixando a manteiga escorrer muito além da borda do pão. Com uma rápida lambida sugou a gordura que brilhava na ponta da mesa e limpou as mãos na barra azul da saia franzida. Esperou impaciente o velho ônibus da escola sentada na escada de casa olhando para o vento que balançava a copa das árvores e se livrando do cabelo que teimava em lhe roubar a visão. Ficou aborrecida um bocado com isso. Quando o Ônibus colorido apontou no começo da esquina abriu um sorriso debochado , mas se zangou com o motorista, um senhor de bigodes já ralos, por tê-la feito esperar muito tempo.

Da janela Sônia mal podia acreditar no que via. Ainda sonolenta, descabelada e com a maquiagem por fazer contava ao marido por telefone que sua filha fizera tudo sozinha e que se preocupava com essa súbita mudança de comportamento de kika. – Você não deve encanar com isso, é coisa da idade, vai ver tá querendo copiar alguma amiguinha. Eu tenho que ir, fica mais próxima dela, a noite a gente conversa...-, Mas você não entende foram as palavras finais de sua mulher, e ao desligar o telefone sônia se aprontou com uma ansiedade um pouco incomum dentro do seu cotidiano regrado. Achava kika uma menina esquisita. Achava sim ,- não parece filha minha- dizia relutante para si mesma, mas tinha vergonha de compartilhar essas coisa com os outros. Talvez tivesse vergonha de admitir que vasculhava o quarto da filha para saber o que se passava com ela, e que lia todas as páginas de seu bloco de anotações guardado dentro de uma gaveta numa pasta que trazia um adesivo da hello kitty envergonhado como se dissesse – Você não vai fazer isso. Não houve uma vez que Sônia não tivesse feito. Inclusive naquele 13 de abril.

Na escola kika parecia um pouco diferente, permanecia quieta durante as aulas e não sorriu nem quando o professor de matemática, um gordo que balançava a barriga quando se enfezava ao ouvir uma resposta errada de um aluno foi motivo de chacota para um bando de guris incontroláveis. Na hora do recreio, se sentou um pouco afastada das amigas e ficava observando como os garotos da série seguinte pareciam crscidos, observando como as meninas mais velhas andavam , falavam, e se vestiam. Algumas garotas da quarta-série chegaram a olhar meio esquisitas para kika, mas ela não ligava. Havia no seu rosto uma certeza e uma seriedade que chamava mesmo atenção. Era a primeira vez que nenhum garoto da turma 31 havia puxado as chuquinhas que despencavam do alto da sua cabeça. Com os cabelos soltos kika seguia sem ser importunada e os corredores do colégio católico que estudava também ficaram um pouco mais silenciosos com isso.

Quando chegou em casa e explicou a mãe que não queria mais que a espiasse saltar do ônibus pela janela, Sônia ficou perplexa. Logo se livrou do abraço mais apertado que sua mãe já lhe tinha dado para dizer que ia estudar no quarto. Sônia mal teve tempo de perguntar sobre o que havia acontecido em seu quarto. Ao abrir a porta, kika foi conferir se os 4 grandes sacos azuis de lixo ainda repousavam ao lado do armário. Conferiu um por um até perceber que o último deles estava praticamente vazio e o seu conteúdo parcialmente devolvido ao lugar de origem em seu quarto, como se alguém que estivesse pondo tudo no lugar acabasse subitamente desistindo. Sônia, de ouvidos grudados na porta, ouviu apenas um – Não quero mais isso- no que kika tratou de colocar tudo embolado de volta no saco. Se despediu novamente de cada um de seus amigos de pelúcia, das suas bonecas e acreditou dar o nó mais apertado que podia ao fechar os sacos pela boca. Depois correu até a porta e disse para a mãe- Não ouça mais detrás da porta. Aquilo tudo do saco não quero mais. To esperando ficar velha, agora tchau!

No fim de semana Sônia pediu desculpas e trouxe ingressos para o parque de diversões que kika adorava. A menina mal tocou nos bilhetes e disse a mãe que não estava interessada. Que ia se fechar no quarto e ficar esperando. Sônia ainda tentou conversar uma porção de vezes mas kika não dizia mais do que duas palavras aborrecidas. Ficava se lembrando de uma conversa que tinha tido com daniela, uma menina loirinha da quarta-série. Nela, disse que queria saber o que fazer para ficar mais velha. Disse que havia decidido ser mais velha e que não tinha volta. Daniela achava aquilo tudo engraçado. Chegou a dizer para kika que isso era besteira, mas no fim entregou.. – Olha, só tem um jeito, você tem que menstruar. Eu já fiz, e agora tenho até peito. E mostrou o sutien de bordas trançadas com um orgulho que fez kika corar. Mas como é que eu faço isso , perguntou a caçula. Bom, acho que vai ter que esperar mesmo, não sei outro jeito. Kika soltou um suspiro e emendou – Mas não é possível deve haver alguma maneira, me diz. As duas já estavam atrasadas para aula e daniela completou – você vai ter que ficar mais velha.

Dali em diante resolvera, ia ficar velha, não tinha discussão. Pintou a parede do quarto de branco, livrou a porta dos antigos garranchos, trocou as roupas de cama, abandonou o velho bloco de notas, passou a fazer as coisas sozinha e não mais pediu para sua mãe escovar os seus cabelos sentada na cadeira da sala vendo televisão. Nem lembrava mais dos brinquedos e dos nomes que tinha dado aos bichos de pelúcia que colecionava espalhados por todos os cantos. De dentro do seu armário surgia um grande espelho, daqueles de corpo inteiro, e ao lado fotos de roupas legais, cortes de cabelo e a moda que lia nas revistas. Passou o terceiro ano inteiro de um modo estranho como se estivesse se preparando para alguma coisa, como alguém desencaixado, desencarnado. Falava como as amigas mas era como se não falasse de verdade, morava em sua casa mas era pouco notada, habitava o silêncio que a circulava e apenas se preparava para quando acontecesse. Mal podia esperar. Tinha um semblante mais contido e até um certo orgulho que escapava nos lados dos olhos.

Durante os últimos meses do ano kika discutia as coisas com a sua mãe encarando-a nos olhos dizendo e falando de forma tranqüila. Pressionou tanto até que sônia finalmente concordou em transformar o cabelo negro de kika numa cascata dourada, ainda que apenas nas pontas. Já era o suficiente para a menina que dizia tudo numa calma impressionante. Havia pedido também a mãe que pudesse botar um piercing na orelha, no que sônia foi irremediavelmente contra. Deixa eu virar velha , dizia para si mesma. No mês de dezembro a turma de kika ia viajar para uma colônia de férias e passar duas semanas num hotel fazenda. Era um programa que sempre agradava a menina. Kika olhou um bocado de tempo para sua mãe, que já esperançosa escutou um – não, isso estragaria os planos.

As inúmeras revistas teenagers, as fotos e as roupas que tinha comprado recentemente foram as únicas testemunhas de uma espera silenciosa. Kika mal falava com as amigas no telefone e já não almoçava com a família na sala nos fins de semana, Achava que todo o tempo tinha que ser gasto desejando o que mais queria. Queria ficar mais velha. No fundo não sabia bem o porque , ou achava que ficando isso ia explicar muita coisa e que então ia ver que estava certa e que ia ser recompensada. Assistia a tv vendo os programas que mostravam uma vida que ansiava em deixar brotar, tudo era mais iluminado e mais brilhante na sua cabeça. Era assim que pensava- minha vida vai ser um comercial, divertia-se chupando um pirulito de morango, único hábito que não abandonara por completo.

Quando janeiro do ano seguinte veio kika passava as tardes dos seus dias enfurnada nos lençóis de motivos florais que tinha pedido a mãe, assistindo televisão sem realmente prestar atenção. Passava a maior parte do tempo triste e aborrecida. Não falava com ninguém. Tinha emagrecido um pouco e sua mãe ficou seriamente preocupada. Um psicólogo a visitava toda semana e kika concordou em recebe-lo já que sabemos que eles não são muito de falar. Dr. Ruiz dizia que precisava de um certo tempo para perceber o que acontecia com a menina , para uma sônia cada vez mais aflita. Nos meses que se seguiram a coisa passou a funcionar. Da maneira que kika queria, quer dizer. O dr propunha uma série de brincadeiras que a menina recusava decidamente e ficava obrsevando a impassividade da garota. Que nada tinha a ver com falta de energia ele prontamente explicava a sua mãe. Era com se ela se recusasse a fazer as coisas por uma escolha dela própria, como se não concordasse com o que acontecia, dizia ruiz um tanto animado com a prórpia percepção. Sônia quase chegou a demitir o psicólogo quando este disse que não acreditava se tratar de um problema grave. Isso para ela era quase como chamá-la de burra na sua cara.

No dia 4 de março, um dia após o retorno das aulas, Sônia que já não acordava kika para ir a escola acordou atrasada e foi trabalhar equilibrando uma pasta cheia de papéis que ficara organizando na cansativa noite anterior. Exatamente ao meio-dia kika levantou bastante cansada, e daí em diante seguiu uma série de horas até que finalmente soltou o lençol branco de suas mãos. Deu um grito como nunca havia saído de sua boca, correu ao banheiro e passou um bom tempo se olhando de todos os ângulos que conseguia descobrir. Depois pegou o grande lençol branco com as mãos trêmulas e pendurou em cima de sua cama como quem finca uma bandeira em território conquistado. Sentia-se diferente, com um contentamento que transbordava de todas as suas partes. Quem olhasse para ela gritando e pulando em cima de sua cama encontraria expressão tão ou mais inocente da que tinha no começo do ano anterior. Já sem fôlego sentou na sua cama sem saber bem o que fazer. Sentiu-se sozinha pela primeira vez em muito tempo. Pegou o telefone e ficou longamente explicando que havia mudado de idéia e que a amiga precisava entender. Que se preciso fosse ia chamar o seu pai para ajudá-la. Sua amiga acabou concordando meio contrariada. E no fim do dia kika surgiu pela porta da frente com o rosto encoberto pelos gigantes sacos de lixo, que ia trazendo desengonçada um por um . Estava com uma felicidade radiante e fez a única coisa que podia fazer, colocou-os de volta nos lugares de origem um por um e contou a todos eles a coisa maravilhosa que tinha acabado de lhe acontecer.

1.10.2007

Júlia

As vezes a vida de solteiro para um alguém que já passou dos vinte e cinco anos pode ser bastante cansativa e entediante. Você nunca sabe para aonde vai sair, e mesmo que saiba, sempre vai ter algum amigo esperto com um programa descolado mudando todos os planos na última hora. Aí quando você começa a gostar de algum lugar já é sinal de que este lugar esta perto de acabar. E, se algum amigo seu te convida para uma festa em sua casa disparando as palavras mágicas: bebida liberada, é a chave para ir a locadora mais próxima e alugar um dvd qualquer, o título não importa. Especialmente se você não bebe, estas festas podem ser assustadoras. Me lembro de uma vez que a moda era a dança do gorila. A gente nunca sabe de onde essas coisas surgem, mas logo se espalham feito epidemia. A dança do gorila era uma espécie de ritual em que um grupo de homens se reuniam em uma roda abraçados, quando o primeiro deles se separava e dava o sinal. Batia forte no peito como um primata. Logo os outros também faziam o mesmo. Depois disso saíam cambaleantes e soltando gemidos roucos até a primeira coitada que pudessem agarrar por trás e pular com ela feito um chipanzé no cio.

Olhando assim pode até parecer engraçado, e se você é uma pessoa com digamos “ um espírito aberto” não vai se incomodar tanto. Não que eu fosse uma criatura introvertida ou algo do tipo. Mas sempre fui alguém que gostava de se dedicar aos outros. Posso dizer que nunca fui o homem das multidões. Gostava de ter uns poucos amigos, uns poucos colegas de trabalho e um ou dois hobbies os quais me dedicava. Não tenho nada contra pessoas, quero deixar claro. Saio de casa regularmente, pratico esportes, vou a shows de música. Só não suporto estar ao lado de um bando de gente que mal se conhece, falando de coisas que ninguém sabe para passar um tempo até que o efeito da bebida te leve ligeiro até o pescoço de alguma menina.

faz dois anos que estamos juntos, quero dizer mais intimamente. Já conhecia julia havia uns cinco anos. A gente era bem próximo, estava sempre junto. Nos comprimentávamos com um pequeno beijo nos lábios, coisa de amigo. Levou algum tempo até que de segurar a sua mão eu pude conhecê-la um pouco mais. Ela gostava quando eu soprava de leve libertando o seu pescoço dos cachos dourados que pendiam até o começo das costas. Gostava também que apertasse as suas bochechas deixando-as rosadas ou quando eu a abraçava por trás trazendo o corpo dela bem próximo do meu.

Desde o momento em que nos conhecemos até o dia em que, posso assim dizer, ..............a nossa união , júlia se mostrou sempre mais atirada. Jamais passava pela minha cabeça que algum dia teríamos um contato mais próximo, como acontece agora. Não posso dizer se ela já imaginava que íamos acabar desse jeito, mas te digo que havia alguma coisa de diferente no seu modo de sorrir. Algum código, alguma melodia escondida endereçada a mim. Hoje eu tenho certeza disso, apesar dela nunca ter tocado nesse assunto. Júlia não é tanto de falar, gosta mais de ouvir. Diz que eu sei sempre tanto, coisas que ela não faz a menor idéia. Na maior parte do tempo eu até gosto de ver os seus olhinhos verdes se revirarem procurando algum sentido para o caminhão de coisas que eu falo. As vezes quando ela esta triste ou aborrecida, fica a enrolar os largos cachos em movimentos circulares olhando para a janela como que hipnotizada por alguma coisa que não sei o que é. Existe algo de fascinante que sempre me cativou em julia. Diferente das outras pessoas que já tinha conhecido ela parecia ter uma inocência ainda preservada, um frescor e uma vontade de viver incomuns. Era estranho mas estar ao seu lado reforçava o meu espírito já um pouco envelhecido, ao mesmo tempo que renovava a minha vitalidade.

Fui o primeiro homem de sua vida. Não que isso signifique alguma coisa e tão pouco gosto de ficar segurando este troféu. Lembro-me que ela estava ainda mais nervosa do que eu e parecendo não saber direito como as coisas funcionavam. Hoje acho engraçado. O modo como ela me apertava no começo e gemia tão alto que me fez ter os maiores cuidados com o seu corpo liso e branco que tremia e aos poucos foi se acalmando e procurando os meus braços para dormir aconchegada. Nunca vou me esquecer disso. Tão logo terminamos você dormiu o sono mais pesado que já pude presenciar.

No decorrer destes dois anos o nosso jogo sexual se tornou mais intenso. Júlia passou a relaxar mais e a deixar as coisas acontecerem sem antecipação. Ela também passou a se dedicar mais a mim, ficando boa parte do seu tempo a meu lado. Éramos posso assim dizer muito unidos. Gostava sobretudo da forma com que júlia cativava as pessoas e logo se tornava o centro das atenções onde quer que fosse. Quando estávamos a sós no quarto, era o momento em que podia experimentá-la, podia gozar de seu prazer único, tocar aquele corpo como se estivesse explorando uma montanha gelada, para do alto fincar uma bandeira como quem diz ......meu!


Se alguma vez disser que tive vontade de estar com uma outra pessoa vou mentir. Experimentei com júlia uma sensação de preenchimento que não conhecia. É como se tudo bastasse. Os outros programas, as outras pessoas se tornaram banais, triviais. Havia sempre uma vontade de largar qualquer coisa que eu estivesse fazendo para correr até aqueles cachos dourados e segurar o corpo macio de julia até não poder mais.Os amigos ficaram receosos, depois de um tempo os que ainda sobravam compreenderam e não se importavam com a minha falta de tempo. Mas tentava me equilibrar na medida do possível para agradar a uns e a outros. Por mais difícil que fosse e por mais injusto que podia parecer o resultado disso.

Tudo vinha acontecendo como cabe a qualquer união entre duas pessoas no espaço de dois anos. Foi quando recebi a notícia, por familiares, que ela ia ter de viajar para morar com um tio distante, nos eua, alegando que terminando os estudos por lá, as chances de conseguir um bom emprego seriam muito maiores. Cheguei a conversar com júlia sobre isso. Ela parecia ainda confusa e não me passou certeza da sua decisão, muito embora as passagens já estivessem compradas e ela fosse embarcar dali a duas semanas. Sei que os seus olhos estavam confessando uma certa culpa por estar agindo desta forma, e um grande medo de encarar-me de frente. Não investiguei a fundo mas sei que estava também com raiva da decisão e pressão familiares.

Júlia nunca chegou a tomar aquele avião o que me deixa de certa forma extremamente aliviado. Posso dizer quase com certeza, dada a proximidade da minha ligação com ela, que os acontecimentos que seguiram foram por ela também endossados. Na véspera do seu embarque tive com júlia para ainda tentar dissuadí-la desta decisão, a meu ver, equivocada. Vou pular a parte em que nossos corpos suados trocaram carícias intimas nem o fato de naquela noite ela ter se entregado a mim como nunca antes havia feito. Depois do sexo júlia ficou muda por um longo período com um olhar cabisbaixo e interrogativo direcionado para o lado da cama em que eu estava. Apesar dela não ter aberto a boca para dizer uma só palavra sabia com uma espantosa clareza o que queria dizer. Estávamos juntos há dois anos e, era capaz de soletrar um alfabeto inteiro para cada expressão que ela modificava. Depois de me revirar por aquele quarto observando seus olhos atônitos parei por um momento, dei um longo e apaixonado beijo em júlia e prometi para mim mesmo que as coisas não ficariam deste jeito. Já tinha tudo elaborado, bastava que júlia me ouvisse atentamente e confiasse em mim que tudo ia acabar bem. Depois de dizer o que ia fazer ela me olhou de forma complacente e balançou a cabeça afirmativamente para tudo o que eu havia explicado antes. Prometi a ela que tudo ia se resolver rápido e que ficaríamos juntos.

Júlia cedeu o seu corpo magro e branco a mim como naqueles exercícios de mulheres grávidas que se atiram de costas aos seus maridos para atestar a sua confiança neles. Não houve um instante de hesitação. Tudo aconteceu como previra. Segurei as suas costas da maneira mais firme e afetuosa que encontrei e dei um leve beijo em sua nuca antes do seu pescoço girar cento e oitenta graus de um lato a outro e finalmente desabar o topo da sua cabeça procurando o solo. Chupei a única lágrima que desceu do meu olho direito não escondendo um sorriso de contentamento que brotava na minha face. Dormimos juntos naquela noite.

Uma semana depois meu pai já havia mobilizado toda a força policial da região na procura da menina que tinha sumido misteriosamente um dia antes do seu embarque para os eua. Por ser sua filha mais nova, ele estava moído e posso afirmar com certeza que o velho tava mesmo muito mal. Não sei se ia se recuperar dessa. Minha mãe, os vizinhos e pessoas que não conhecíamos mandavam mensagens de esperança e solidariedade, mantendo sua fé na aparição da menina júlia. Na sua classe, a segunda série do primeiro grau, a professora botou uma foto de júlia num altar construído de forma apressada com mensagens de apoio. Toda a cidade empregou esforços numa busca desesperada da menina de sete anos que sumira sem deixar pistas.

Toda esta comoção me deixava muito contente e seguro de ter feito a coisa certa. Era estimulante ver como júlia era querida. Eu me tornava mais privilegiado, me distinguindo dos demais por ter conhecido e desfrutado dela de uma forma única que ninguém nunca poderia superar. Um ano mais tarde meus pais decidiram vender a casa e deixar a cidade para apagar as lembranças que a todo momento os torturavam. Disse para eles que ficaria morando lá mesmo, como uma forma de homenagear Júlia. Preservaria seu quarto infantil intacto como uma lembrança de sua inocência e cuidaria para as buscas não se interrompessem.

Três anos depois que tudo aconteceu sou o único da família que se mantém em contato com as autoridades para receber alguma informação sobre o caso Júlia. Nada de conclusivo chegou a ser afirmado e as autoridades seguem sem pistas que indiquem o que possa ter acontecido. Posso dizer que toda esta mobilização me traz um gozo especial, um presente deixado por júlia, como um segredo partilhado entre ambos, tornando a nossa união ainda mais especial. Recentemente reformei a casa no que nossos pais não se opuseram. Quebrei algumas paredes e aumentei o meu quarto unindo-o ao de júlia. Prometi manter a decoração do lado do quarto dela intacta. Meus pais não acharam nada estranho pois sabiam que éramos mesmo muito ligados. Ao refazer as paredes do quarto, agora ampliado, cuidei para que o corpo de júlia fosse coberto de cimento na parede junto a nossa cama. Fiz a obra toda sozinho e numa velocidade que até me impressionou. A cada dia que passa me sinto melhor e tenho mais certeza daquilo que fiz. Sei que seremos felizes e que isto vai ser um segredo só nosso, meu e de júlia para sempre.


21 out 1999.

1.02.2007

As estrelas que sobem ao céu nas noites monótonas brilham labaredas faiscantes. Mal da para seguir com os olhos , cegos de inveja e incapazes de segurar a luz por muito tempo. Com o que sobra da penumbra eu faço bichos na parede. Uma fauna completa. No limiar de tudo que se encobre há uma série de criaturas inconcebíveis. Nada que você possa classificar ou que já tenha visto. É lá que deito a minha razão de ser. Cansada e desejosa de um sono profundo. Na tentativa de manter a minha mente alerta apenas o suficiente para não fechar os olhos e libertar a minha loucura na medida em que possa me segurar ainda no meio-fio , vou ziguezagueando. Espere para falar comigo do outro lado da linha. Caso contrário serei incapaz de me equilibrar , e se cair, serei incapaz de mirar o que me derrubou.

12.27.2006

Mudança de Hábito

Esquece o que eu te disse. Não entendo esta sua mania de querer sempre o melhor de mim. As vezes eu gostaria apenas de tomar uma cerveja olhar o seu rosto e não dizer palavra alguma. Nada de – o que você esta pensando? Ou - você nunca compartilha suas coisas comigo. Mas existe sempre uma ânsia sua que devora o meu sossego. Uma unha cravada em cada poro do meu corpo que me faz ficar alerta por dias e dias. Fico cansado de tentar me virar em muitos para satisfazer a sua necessidade de me ter do avesso. Existem tantas coisas que ainda permanecem ocultas para mim. Os seres abissais do qual tinha medo ainda repousam no fundo do silencio, lá onda não há luz. É difícil você perceber, mas nunca tive tempo para mergulhar alguns metros a mais, tendo que lhe revelar a cada instante o que tinha pela frente, o produto de minhas investigações. O meu silêncio nunca foi um dedo em riste. Toda a vez que te encontrava , sorriso aberto, e olhos que engoliam o mundo me sentia mais vivo. Só que nunca pude atender a sua curiosidade mórbida. Sou daqueles que apreciam a paisagem. Deixo as coisas passarem por mim como quando coloco a cabeça para fora da janela e engulo o vento. Pensei em muitas coisas em comum. Fiz planos. Mas não queria me alimentar do outro. Não queria arrancar os fiapos de carne presos entre os seus dentes brancos. A gente precisa digerir para depois transformar em energia. Mas você queria sempre mais, e eu estava só começando. A sua insatisfação, sua vida repleta de urgência, me fez esquecer que tenho apenas vinte e nove anos. Sei que jamais entendeu esta parcela da vida que foge ao nosso controle. Queria tanto ter o prazer de encontrá-la ao acaso no fim de um dia tedioso, mas sei que você nunca abandonou o calor de minhas costas , minha nuca. Por isso digo que simplesmente aconteceu. Um dia eu já não estava mais lá no seu porta-retratos. Muito antes mesmo de você atirá-lo do décimo andar eu já tinha partido por aquela janela. Tentando refazer minha vida caco por caco. Sem querer completar um vaso só por medo de não estar inteiro ainda.

Você nunca entendeu este espaço da vida que foge a nossa compreensão. Nunca lhe prometi meus sonhos. Minha vida. Prédios que se ergue muito próximos fazem sombra um no outro.

Sem rancor.

10.27.2006

Des contro le ando

Catarina esqueceu de me acordar novamente. Vestiu a sua insensatez , borrifou a mais nova margarina nos seus dois olhos cozidos e partiu em desatino para dentro da panela. Fiquei preso no banheiro com o zíper fechado. Esperando um comando da cabeça para livrar minha asa esquerda e puxar da descarga todas as paredes de esterco seco. No dia anterior, antenor o vizinho, notando o estranho rebuliço dentro do sapato ao lado comentou que achava necessário chamar as formigas e dar por encerrado o piquenique. Não era algo novo, afinal, as formigas, silenciosas, batem cabeça e caem num sono pesado, levando tudo embora daqui.

Um dia isso tudo foi advertido pelos pubianos que vivem a margem da fronteira entre o céu e a terra. E, eu espero correr o mais devagar possível para deitar a sola dos dedos no monte mais baixo, respirar a cola da remela, da tua imensa janela , esticar o pescoço do pequeno bule branco e servir de chá todo o leite do Rio.

9.18.2006

Recomeço

Quase depois da meia-noite eu me escondo. Mas não dá muito certo. Me pego exergando o meu braço vacilante. As vezes um grito sai da minha boca. Cruza o céu deixando um rastro de poeira. E, eu observo de longe. Preso a terra. As minhas pegadas não me denunciam. Não é por aí que me encontram. O rastro que eu deixo não completa uma página de história em quadrinhos. Mas há algo ali que escorre. Tem alguma coisa que liga todo o resto a mim. As vezes sou um conjugado de pequenos pontos que seguem ao infinito. Para saber o meu real tamanho voçê vai ter que sair ligando todos estes pontos. Como no jogo infantil. No meio de tudo eu vou estar lá. E não vai ter nada que voçê possa reconhecer. Porque eu guardei a melhor parte para alguém que esta chegando. Aos poucos. Sou só rabisco ainda. Por isso preciso tanto de voçê.